Em julho de 2010, decidi realizar a quarta viagem ao continente africano. Desta vez, fui até Angola, um país a que Portugal está histórica e culturalmente ligado.
A viagem começou por Luanda, a capital e uma das cidades mais efervescente de todo o continente. Sendo o meu último destino a cidade mais a sul, fui percorrendo as províncias intermédias, uma a uma: Bengo, Cuanza Norte, Cuanza Sul e Benguela. Depois, uma pequena inflexão para o interior: Malange e Bié, pelo planalto central, até ao Huambo. Seguiram-se a província da Huíla e a cidade do Lubango. Só depois, o destino final: a província litoral mais a sul, o Namibe.
A antiga Moçâmedes dá agora lugar à cidade com o mesmo nome da província. Uma homenagem ao mais antigo deserto do mundo e a residência única de uma planta sui generis, que pode durar mais de cem anos, a Welwitschia mirabilis. O deserto do Namibe, que significa numa das línguas da região "lugar vasto", estende-se por 1600 km ao longo do litoral, entre o sul de Angola e a Namíbia.
Foi nesta chegada à cidade, que tomei contacto com os Kuvale. Este povo habita, juntamente com outras etnias, esta região de Angola. No entanto, distingue-se pelo seu vestuário, adereços e pela sua forma de vida, intimamente ligada à pastorícia.
Nas ruas do Namibe experienciei um acontecimento inusitado: duas mulheres começaram a correr atrás do carro onde viajava, falando numa língua que não era o português. Essas mulheres, vestidas de forma invulgar e que tentavam vender um líquido qualquer – que descobri mais tarde chamar-se óleo de mupeke –, são de etnia Kuvale. Percebi que, para além destas mulheres, por toda a cidade havia pessoas Kuvale ou mais comummente chamadas de mucubais, que se concentravam principalmente junto do mercado municipal para vender óleo e outros pequenos objetos, como cestos ou sandálias – as conhecidas sandálias dos mucubais, pela forma peculiar como encaixam o dedo indicador.
Senti a necessidade de saber mais, de investigar e de procurar explicações para as diferentes questões que se levantavam enquanto experienciava este cenário: Como vivem os mucubais em Angola? O que terá preservado as suas tradições? Qual o porquê do uso de determinados objetos e adornos corporais tão diferentes dos dos restantes angolanos? Como se relacionam os mucubais com a restante comunidade? O que vincula a prática das suas tradições à sociedade crescentemente globalizada da cidade do Namibe? A partir do seu exemplo concreto, surge a questão mais genérica: que fatores contribuem para a crescente ocidentalização das culturas tradicionais?
Sob os meus olhos erguia-se uma outra forma de visualidade, de traços e de cores. Fui impelida a tratar visual e plasticamente o tema, com o propósito de criar uma obra, que conduzisse à reflexão sobre as questões que começaram a avolumar-se. Tratava-se de congelar visualmente este cenário, como mote à representação de uma experiência muito particular. Experiência, essa, balizada pela identidade autoral e pelo horizonte espácio-temporal no qual me encontrava.
Percebi que as pessoas, especificamente os Kuvale, eram a charneira entre dois mundos: o local, referente às tradições e ao ‘mato’ onde viviam, e o global, a cidade onde se deslocavam com frequência. Então, se eram as pessoas o centro de todas as questões, era preciso ir ter com elas, falar com elas, descobri-las... Através dos seus depoimentos, poderia conhecer os seus pensamentos, as suas ideias, a sua visão do mundo e das coisas.
Foi neste contexto que conheci as várias Mulheres (que não pude saber o nome por não falarmos a mesma língua), o Sr. Samuel, o Soba José Buni e o Mebai Fernando. Todos eles Kuvale e os protagonistas deste projeto.
A obra Kuvale, construída sobre uma narrativa não linear, procura contornar a passividade do espectador, instigando-o à investigação e à procura por conta própria. É o utilizador que a partir das suas inúmeras combinações de leitura, que interliga os seus conteúdos de acordo com o seu critério de utilização da interface. Os vídeos e áudios incluídos no projeto sintetizam o essencial das temáticas estudadas — globalização, contaminação, tradição, comunicação, comércio, escola, soba, casamento, protagonistas — inter-relacionando-as.
A viagem que deu origem a este projeto continua e efetiva-se na sua circulação em rede, acessível de qualquer parte do mundo. Esta ferramenta digital permite distribuir a obra de uma forma ampla, sem os convencionais limites geográficos.
DOCUMENTÁRIO EXPERIMENTAL HIPERMÉDIA by SALETE FELíCIO
Os Kuvale, ou mucubais como são chamados em Angola, são pastores praticantes da transumância que habitam entre o mar e a serra da Chela.
A obra nasce da descoberta do outro que nos é estranho e da reflexão sobre a crescente globalização das culturas tradicionais.
Poderá o local ser global?